Crônicas de Luís Fernando Veríssimo

Blog com crônicas de Luís Fernando Veríssimo

27 julho 2006

Crônica - O Homem que Vivia Anedotas

- Sempre deu tudo errado comigo. Desde criança.
- Compreendo.
- Na escola, não conseguia prestar atenção em nada. Estava sempre pensando em mulher nua.
- Espere aí. Você não é o...
- Sou. O Juquinha. Todo mundo ficou sabendo das minhas histórias. Virei anedota.
- Mas as histórias até que eram engraçadas.
- Engraçadas para quem não foi expulso da escola, como eu. Meus pais me mandaram a um médico para curar minha obsessão.
Um psiquiatra.
- Não foi esse médico que...
- É. Começou a me mostrar desenhos. Uma cadeira. Um chapéu. Um telefone. Pediu para eu me concentrar.
- E aí você disse...
- Eu disse: "Me concentrar como, se o senhor não pára de mostrar figurinha erótica?" O senhor está rindo porque não foi com o senhor. Fiquei anos em tratamento.
- Desculpe. Eu não estava rindo de você. Continue.
- Como não tinha educação, fui ser mecânico. Não deu certo.
- Por quê?
- Sabe aquela história do cara que acendeu um fósforo dentro do tanque do carro para ver se tinha gasolina, e tinha?
- Foi você?
- Foi. No hospital, tiveram que me reconstituir. Pegaram as partes e juntaram de novo. Tudo bem, só que...
- Só que para ouvir direito, você precisa levantar o braço! Essa é ótima.
- Ótima porque não foi com o senhor.
- Desculpe. Foi horrível.
- Quando saí do hospital comprei uma motocicleta. Uma noite, na estrada, vi os holofotes de duas motocicletas que vinham em sentido contrário. Só por farra, resolvi passar com a minha entre as duas.
- E era um automóvel. Essa eu conheço.
- Voltei para o hospital. Tiraram radiografias. Eu estava pés­simo. Quando o médico disse quanto ia custar o tratamento, eu disse que não podia pagar.
- E ele?
- Ele disse que por um preço módico mandava retocar as radiografias.
- Grande! Quer dizer, horrível. E seus pais?
- Está vendo este relógio? Está na família há gerações.
- É uma beleza.
- No seu leito de morte, poucos minutos antes de expirar, papai me vendeu.
- Boa, boa. Quer dizer, triste, triste.
- Me casei. Não durou muito. Minha mulher estava convenci­da que era um refrigerador.
- Realmente, não dava para continuar vivendo com uma louca.
- O pior não era isso. O pior é que ela dormia com a boca aber­ta e a luz não me deixava dormir. O senhor está rindo outra vez.
- Não posso me conter. E que você teve uma vida engraçada.
-Engraçada? Trágica. Tudo comigo deu errado. As pessoas riem de sádicas.
- Você tem razão.
- Para esquecer tudo, fui fazer uma viagem. Quando o avião estava a dez mil metros de altura, ouviu-se uma voz que dizia: "Isto é uma gravação. Este avião não tem piloto. É dirigido por um sis­tema totalmente automático que substitui com vantagem o controle humano. Não há com o que se preocupar. O sistema foi exaustiva­mente testado e é absolutamente a prova de falhas, de falhas, de falhas"...
- O avião caiu e foi assim que você veio parar aqui.
- Não, São Pedro. O avião caiu no mar, eu sobrevivi e passei uma temporada numa ilha deserta com uma mulher. Só que a mulher era a Betty Friedman.
- Acho que já vi esse cartum.
- Pois é. Aí fui salvo e ainda passei por várias anedotas até resolver me matar. Não conseguia fazer nada certo. Só restava o suicídio. Dei um tiro na cabeça.
- E aqui está você.
- Não. Errei o tiro. Depois fiquei tão contente de ainda estar vivo que dei um tiro para o ar. Aí acertei na cabeça. E aqui estou eu. Livre, finalmente, das anedotas. O senhor ainda está rindo!
- Meu filho, você sabe quantas anedotas de São Pedro na porta do céu existem?
- Não, São Pedro. Por favor. Não!
- O que é que eu posso fazer? Esta é uma delas. Houve um maremoto em Copacabana, morreu todo mundo e nós estamos com o céu lotado.
- Lotado? Mas só a população de Copacabana lota o céu?
- É que tinha os argentinos. Você só vai encontrar lugar no Purgatório, e na lista de espera.